Por que um outro mundo é possível ? 

Por que um outro mundo é possível ? 
Fernando Alcoforado*
Este artigo tem por objetivo demonstrar a necessidade e, também a possibilidade de construção de um outro mundo diametralmente oposto ao atual que se defronta na era contemporânea com crises econômica, social, ambiental e das relações internacionais que impeçam a ocorrência de consequências danosas para toda a humanidade. A cada dia que se passa, essas crises se avolumam e se aprofundam seja nos planos nacionais, seja em escala planetária. O mundo passa por um período conturbado na era contemporânea em que tudo é varrido pela velocidade das mudanças caóticas nos campos econômico, político, social, tecnológico, ambiental e das relações internacionais. Se por um lado existe otimismo com a perspectiva de avanço do progresso científico e tecnológico, existe também um grande pessimismo diante da perda dos referenciais do passado e da falta de sentido da vida. Embora nos séculos XVIII e XIX o progresso da civilização europeia despertasse entusiasmo, esse sonho se dissipou a partir do século XX que foi uma época devastada por guerras em escala jamais vista, ditaduras, explosão populacional, vastas áreas de pobreza extrema, entre outros problemas, que contribuíram para que fosse colocada em xeque a ideia de progresso.
No século XX, desapareceram as utopias como a da edificação de um mundo melhor, de uma sociedade sem classes sociais com o fim da União Soviética e do sistema socialista do leste europeu, e em seu lugar surgiram distopias como as de Aldous Huxley com sua obra Admirável mundo novo e George Orwell com sua obra 1984 que vislumbravam um futuro sombrio para a humanidade. No início do século XX, o sociólogo Oswald Spengler com sua obra O declínio do Ocidente dizia que o Ocidente já havia há muito atingido o seu apogeu e que, portanto, só lhe restava o declínio. Este clima pessimista não se limitou à primeira metade do século XX se estendendo também para o período posterior à Segunda Guerra Mundial. Embora neste período tenha havido momentos de grande otimismo como durante os “anos gloriosos” das décadas de 1950 e 1960 de expansão da economia capitalista mundial que logo tenderam a se dissipar em meio às sombrias décadas de 1970 e 1980 de declínio do sistema capitalista mundial que continuará sua derrocada até chegar ao fim em meados do século XXI quando a taxa de lucro mundial e a taxa de crescimento da economia mundial alcançarão o valor zero cuja previsão apresentamos em nosso livro Como inventar o futuro para mudar o mundo (Editora CRV, Curitiba, 2019).
O capitalismo nasceu no século XII e adquiriu a maioridade realizando 4 grandes revoluções industriais a partir de 1760 na Inglaterra com a 1ª Revolução Industrial quando a ciência e a tecnologia adquiriram uma importância fundamental para o progresso humano, mediante as contínuas inovações tecnológicas. A ideia que predominava na época era a de usar o acúmulo de conhecimento gerado em busca da emancipação humana e do enriquecimento da vida diária. O capitalismo contribuiu, também, para a realização da 2ª Revolução Industrial que teve seu início na segunda metade do século XIX resultante de transformações socioeconômicas iniciadas por volta de 1870 com a industrialização da França, da Alemanha, da Itália, dos Estados Unidos e do Japão, caracterizadas especialmente pelo desenvolvimento de novas fontes de energia (eletricidade e petróleo), pela substituição do ferro pelo aço e pelo surgimento de novas máquinas, ferramentas e produtos químicos (como o plástico). De 1909, quando Henry Ford criou a linha de montagem na indústria automobilística inaugurando a produção em série e em massa, e o final do século XX, quase todas as indústrias se mecanizaram e a automação se estendeu a todos os setores fabris. A 3ª Revolução Industrial ocorrida a partir da segunda metade do século XX se caracterizou pelo desenvolvimento das indústrias química e eletrônica, os avanços da automação, da informática e da engenharia genética. Agora vivenciamos a 4ª Revolução Industrial com o advento da Indústria 4.0 que tem como base algumas tecnologias comuns do nosso dia a dia, que estão sendo potencializadas para a aplicação na manufatura, que possibilitam o surgimento das fábricas inteligentes que operam com o uso da inteligência artificial.
A evolução do capitalismo foi marcada por extraordinário progresso econômico, social, científico e tecnológico e, também, por eventos que marcaram negativamente a sociedade atual. O principal deles foi sem dúvida às catástrofes da I e da II Guerra Mundial das quais resultaram um banho de sangue com a morte de cerca de 200 milhões de militares nos campos de batalha e de populações civis. Na verdade, a ciência e a tecnologia contribuíram para a barbárie de duas guerras mundiais com a invenção de armamentos bélicos poderosos e destrutivos. A ciência e a tecnologia passaram a ser utilizadas numa escala sem precedentes tanto para o bem como para o mal. Adicione-se o fato de que a ciência perdeu o seu valor, como resultado da desilusão com os benefícios que associados à tecnologia trouxe à humanidade. Todo esse desenvolvimento científico e tecnológico deve fazer com que, em meados do século XXI, ocorra mudança climática catastrófica global de maléficas consequências para a humanidade que podem ameaçar sua própria sobrevivência.
Após a 2ª Guerra Mundial, o capitalismo adotou o modelo Keynesiano de gestão econômica em todo o sistema capitalista mundial na tentativa de ordenar a economia em cada país e na esfera mundial e evitar a ocorrência de depressões econômicas como as que aconteceram em 1873 e 1929. O Keynesianismo, que contemplava ativa participação do Estado na condução das economias nacionais, contribuiu para o desenvolvimento econômico mundial com o “boom” do capitalismo dos “anos gloriosos” das décadas de 1950 e 1960. O fracasso do Keynesianismo como política econômica capaz de alavancar o desenvolvimento dos países capitalistas centrais e periféricos ocorreu a partir da década de 1970 em consequência das crises do petróleo que elevaram vertiginosamente seus preços e da dívida dos países periféricos com a, também, vertiginosa elevação dos juros bancários. O fracasso do Keynesianismo se somou à  crise que levou ao fim da União Soviética e do sistema socialista do Leste Europeu no final da década de 1980 que abriram caminho para a mudança no modus-operandi do sistema capitalista mundial com a implementação da globalização produtiva, comercial e financeira em escala planetária quando foi introduzida a ideologia neoliberal que preconiza a internacionalização do capital, em todas as suas formas (produtiva, comercial e financeira) e a adoção de políticas de desregulamentação, liberalização e abertura dos mercados dos países, centrais e periféricos, do capitalismo mundial.
Esta mudança do Keynesianismo para o neoliberalismo se concretiza com a chegada aos governos da Inglaterra,  dos Estados Unidos e da Alemanha Ocidental de Margareth Thatcher, Ronald Reagan e Helmut Kohl, respectivamente. As forças liberais e conservadoras na Inglaterra, em 1979, com Margareth Thatcher,  nos Estados Unidos, em 1980, com Ronald Reagan e, na Alemanha, em 1982, com Helmut Kohl passaram a adotar  políticas de cunho neoliberal visando a desregulamentação, a privatização e a abertura comercial em suas economias as quais foram incorporadas pelos organismos multilaterais, fundamentalmente FMI e BIRD, e implementadas nos países que recorriam a estas instituições, em especial os países periféricos. A opção oferecida pelo sistema capitalista mundial do ponto de vista político para os povos do mundo inteiro limitava-se às seguintes alternativas: 1) capitulação/resignação/conformismo com a vitória histórica do capitalismo globalizado neoliberal; ou então, 2) contestar a ordem vigente, mas não a partir de uma perspectiva totalizante, global que levasse à substituição do capitalismo, mas sob uma ótica fragmentada de lutas. A postura prática do capitalismo neoliberal globalizado é o de impedir a contestação da lógica capitalista como ela é de fato. Deliberadamente, os ideólogos do capitalismo neoliberal mundial defendem a tese de que é impossível contestar um sistema vitorioso (o capitalismo) e que ele veio para ficar definitivamente, isto é, o capitalismo neoliberal globalizado.
O discurso dos ideólogos do capitalismo neoliberal mundial se caracteriza pela tentativa de escamotear o conflito entre as classes sociais, dissimular a dominação de classe e ocultar a presença e a dominação das grandes potências sobre os países periféricos do capitalismo, dando-lhe a aparência de universal. A ideologia é, em síntese, uma forma de produção do imaginário social que corresponde aos anseios das classes  e países dominantes como meio mais eficaz de controle social e de amenizar os conflitos de classe e a espoliação internacional, seja invertendo a noção de causa e efeito, seja silenciando sobre questões que por isso mesmo impedem a tomada de consciência dos cidadãos dos países de sua condição histórica, formando ideias falsas sobre si mesmos, sobre o que é ou o que deveriam ser. Neste sentido, a ideologia do neoliberalismo e da globalização contempla a política de desmanche do Estado – como agência econômica, de prestação de serviços públicos e de proteção social -, de desregulamentação do mercado e retirada das barreiras protecionistas, de precarização das relações trabalhistas e do emprego e da contenção das lutas sindicais e populares.
Pode-se compreender a função implícita ou explícita da ideologia na tentativa das classes sociais dominantes de fazer com que o ponto de vista particular das classes e das grandes potências capitalistas que exercem a dominação política de fazer com que apareça para todos os sujeitos sociais e políticos como universal, e não como interesse particular de uma classe determinada ou de um país determinado.  Nesse sentido, a ideologia tem funções como a de preservar a dominação de classes no interior de cada país e imperialista nas relações internacionais apresentando uma explicação apaziguadora para as diferenças sociais no interior de cada país e as diferenças entre os países capitalistas centrais e periféricos no plano internacional. Seu objetivo é evitar o conflito aberto entre dominadores e dominados. Apesar da ditadura neoliberal imposta globalmente, a atual crise do neoliberalismo manifestada na crise mundial de 2008 e a devastação econômica ocorrida desde 1990 em todo o mundo estão contribuindo para impedir que a ideologia neoliberal se imponha.
Os fatos da história demonstram que o liberalismo, o socialismo e o neoliberalismo fracassaram na construção da felicidade coletiva das nações e dos povos do mundo inteiro. Para construir a felicidade coletiva das nações e dos povos do mundo inteiro e acabar com a barbárie que caracteriza o mundo em que vivemos, urge a edificação de um novo modelo de sociedade que possibilite uma convivência civilizada entre todos os seres humanos.  Esta necessidade se impõe no século XXI diante do previsível fim do capitalismo em meados deste século, da degradação ambiental do planeta Terra resultante da exaustão dos recursos naturais e da mudança climática global e da escalada dos conflitos internacionais que poderão levar à guerra de todos contra todos nos planos nacionais e internacional (ALCOFORADO, Fernando, Como inventar o futuro para mudar o mundo. Curitiba: Editora CRV, 2019).  Considerando o previsível fim do capitalismo em meados do século XXI, urge a substituição do capitalismo pelo modelo nórdico ou escandinavo de social democracia, praticado na Dinamarca, Noruega, Suécia, Finlândia e Islândia, que poderia ser melhor descrito como uma espécie de meio-termo entre capitalismo e socialismo. Não é nem totalmente capitalista nem totalmente socialista, sendo  a tentativa de fundir os elementos mais desejáveis de ambos em um sistema “híbrido”.
Em 2013, a revista The Economist declarou que os países nórdicos são provavelmente os mais bem governados do mundo. O relatório World Happiness Report 2013 da ONU mostra que as nações mais felizes do mundo estão concentradas no Norte da Europa. Os nórdicos possuem a mais alta classificação no PIB real per capita, a maior expectativa de vida saudável, a maior liberdade de fazer escolhas na vida e a maior generosidade. Apesar de suas diferenças, os países escandinavos compartilham alguns traços em comum: estado de bem-estar-social universalista que é voltado para melhorar a autonomia individual, promovendo a mobilidade social e assegurando a prestação universal de direitos humanos básicos e a estabilização da economia. Se distingue, também, por sua ênfase na participação da força de trabalho, promovendo igualdade de gênero, redução da desigualdade social, extensos níveis de benefícios à população e grande magnitude de redistribuição da riqueza.
Além de implantar a social democrcia nos moldes escandinavos em todos os países do mundo, urge constituir um governo mundial que visaria não apenas o ordenamento econômico em escala mundial e a paz mundial, mas, sobretudo, criar as condições para enfrentar os grandes desafios da humanidade no Século XXI os quais consistem em: 1) Crises econômicas e financeiras em cadeia; 2) Revoluções e contrarrevoluções sociais em todo o globo; 3) Guerras em cascata; 4) Superpopulação mundial; 5) Pandemia mortal; 6) Mudanças climáticas extremas; 7) Crime organizado; e, 8) Ameaças vindas do espaço, cujas ações de caráter global para neutralizá-las são impossíveis de serem levadas avante pelos estados nacionais isoladamente e pelas instituições internacionais atuais. É um imperativo a humanidade caminhar na direção de uma completa integração econômica e política entre os países. A integração econômica global exige inevitavelmente a integração política mundial.   Da aldeia primitiva, a humanidade evoluiu para uma “aldeia global”. Para que esta aldeia global tenha sucesso, é preciso que haja um governo mundial para haver também um direito globalizado.
É chegada a hora da humanidade se dotar o mais urgentemente possível de instrumentos necessários a ter o controle de seu destino e colocar em prática um governo democrático do mundo. Este é o único meio de sobrevivência da espécie humana. Porque não existe nenhum outro meio capaz de construir um mundo no qual cada ser humano de hoje e de amanhã tenham os mesmos direitos e os mesmos deveres, e nos quais os interesses do planeta, de todas as formas de vida e das gerações futuras, sejam levados em conta, no qual a natureza seja utilizada de maneira ecologicamente e socialmente durável. Um governo mundial teria por objetivo a defesa da paz mundial e dos interesses gerais do planeta, zelaria no sentido de cada Estado nacional respeitar a soberania de cada país do mundo e buscaria impedir a propagação dos riscos sistêmicos mundiais. Um outro mundo é, portanto, além de ser necessário, é, também, possível.
* Fernando Alcoforado, 79, condecorado com a Medalha do Mérito da Engenharia do Sistema CONFEA/CREA, membro da Academia Baiana de Educação, engenheiro e doutor em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Regional pela Universidade de Barcelona, professor universitário e consultor nas áreas de planejamento estratégico, planejamento empresarial, planejamento regional e planejamento de sistemas energéticos, é autor dos livros Globalização (Editora Nobel, São Paulo, 1997), De Collor a FHC- O Brasil e a Nova (Des)ordem Mundial (Editora Nobel, São Paulo, 1998), Um Projeto para o Brasil (Editora Nobel, São Paulo, 2000), Os condicionantes do desenvolvimento do Estado da Bahia (Tese de doutorado. Universidade de Barcelona,http://www.tesisenred.net/handle/10803/1944, 2003), Globalização e Desenvolvimento (Editora Nobel, São Paulo, 2006), Bahia- Desenvolvimento do Século XVI ao Século XX e Objetivos Estratégicos na Era Contemporânea (EGBA, Salvador, 2008), The Necessary Conditions of the Economic and Social Development- The Case of the State of Bahia (VDM Verlag Dr. Müller Aktiengesellschaft & Co. KG, Saarbrücken, Germany, 2010), Aquecimento Global e Catástrofe Planetária (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2010), Amazônia Sustentável- Para o progresso do Brasil e combate ao aquecimento global (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2011), Os Fatores Condicionantes do Desenvolvimento Econômico e Social (Editora CRV, Curitiba, 2012), Energia no Mundo e no Brasil- Energia e Mudança Climática Catastrófica no Século XXI (Editora CRV, Curitiba, 2015), As Grandes Revoluções Científicas, Econômicas e Sociais que Mudaram o Mundo (Editora CRV, Curitiba, 2016), A Invenção de um novo Brasil (Editora CRV, Curitiba, 2017),  Esquerda x Direita e a sua convergência (Associação Baiana de Imprensa, Salvador, 2018, em co-autoria) e Como inventar o futuro para mudar o mundo (Editora CRV, Curitiba, 2019).
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