Fosfoetanolamina não é medicamento

Fosfoetanolamina não é medicamento

Um artigo, assinado por Erick Soares Lisboa, mestre em Saúde Coletiva, Kleize Araújo Souza, doutoranda em Saúde Pública, e Luis Eugênio Fernandes de Souza,  ‎coordenador do Programa de Economia, Tecnologia e Inovação da Saúde do Instituto de Saúde Coletiva/UFBA, publicado no site do Observatório de Análise Política, comenta as decisões judiciais na saúde, especificamente no caso da fosfoetanolamina sintética. A substância, que teria poderes de cura para a doença, tem provocado uma corrida de portadores de cânceres ao Instituto de Química de São Carlos, da Universidade de São Paulo (USP).

No artigo, os autores falam das centenas de ações judiciais na busca pela fosfoetanolamina , substância estudada por um grupo de pesquisa do Instituto desde os anos 1990, sob a coordenação do professor Gilberto Orivaldo Chierice, atualmente aposentado.

Cápsulas de fosfoetanolamina – explica o artigo- foram distribuídas gratuitamente por mais de uma década pelo referido professor, e em 2014 a distribuição foi suspensa através de uma portaria [1] do Instituto de Química da USP São Carlos – Portaria IQSC 1389/2014 – alegando que só poderá ser produzido e distribuído esse “suposto” medicamento mediante licenças e registros feitos pelos órgãos competentes, que neste caso são o Ministério da Saúde e a Anvisa.

Via judicial

Por conta da suspensão, centenas de pacientes recorreram à via judicial para obrigar a USP a produzir e fornecer a substância em questão:” As ações se iniciaram com pacientes no estado de São Paulo, mas devido à grande repercussão e difusão de informações de um suposto medicamento para cura de vários tipos de câncer e de relatos de melhoria do quadro clínico por pacientes e familiares, essas ações, hoje, chegam a Justiça de vários estados do país.”

“O desembargador José Renato Nalini, do Tribunal de Justiça do estado de São Paulo (TJ-SP), no mês de setembro deste ano, derrubou as antecipações de tutela que permitiam a distribuição da substância aos pacientes, alegando que não existem provas da eficácia da fosfoetanolamina em seres humanos,” afirma o artigo.

Em contrapartida, o Supremo Tribunal Federal (STF), através do ministro Luiz Edson Fachin, deferiu no início de outubro uma liminar para uma paciente do Rio de Janeiro em estado terminal, para que a USP fornecesse a substância contra o câncer, suspendendo, assim, a decisão do TJ-SP. Segundo o ministro, a ausência de registro não implica, necessariamente, lesão de ordem pública, permitindo assim, a distribuição da substância.

Segue o artigo:

“A fosfoetanolamina sintética não é, até o momento, um medicamento contra o câncer, pois é uma substância que nunca foi testada em seres humanos, ou seja, a fosfoetanolamina não passou por todas as fases de estudo clínico e, consequentemente, não recebeu a aprovação da Anvisa. Isto significa que não há nenhum elemento científico, de segurança, eficácia e efeitos colaterais que a torne válida como medicamento.

Em 13 de outubro deste ano, a USP divulgou em seu site uma nota pública  esclarecendo que essa substância não é medicamento, na qual destaca-se que: a USP não desenvolveu estudos sobre a ação do produto nos seres vivos, muito menos estudos clínicos controlados em humanos. Não há registro e autorização de uso dessa substância pela Anvisa e, portanto, ela não pode ser classificada como medicamento.

Para o Poder Judiciário julgar a ação são necessários a prescrição médica e o relatório médico, recomendando e justificando o uso da fosfoetanolamina. Por um lado, isso mostra que os prescritores estão prescrevendo a fosfoetanolamina sem ao menos conhecer sua segurança, eficácia e efeitos colaterais e mesmo assim as ações são deferidas. Além disso, ainda na nota pública [2], a USP enfatiza que: cabe ao médico assumir a responsabilidade legal, profissional e ética pela prescrição, pelo uso e efeitos colaterais – que, nesse caso, ainda não são conhecidos de forma conclusiva – e pelo acompanhamento do paciente.

Por outro lado, o Poder Judiciário não tem ignorado os relatos de pacientes que dizem ter uma melhoria significativa de sua saúde com o uso da substância e ainda, deve lidar com a fragilidade de pacientes acometidos por uma doença grave, como o câncer, muitos deles em estados terminais, que enxergam na fosfoetanolamina uma possibilidade de melhoria da saúde e até de cura da doença.

O ativismo judiciário em questão reflete, como em tantos outros casos, a interferência do Poder Judiciário nas questões relacionadas à saúde no país. De fato, a judicialização da saúde é um fenômeno complexo e multicausal que pode refletir desde as falhas na gestão dos sistemas públicos e privados até a atuação excessiva do judiciário por falta de conhecimento sobre o funcionamento do sistema de saúde, aliado a isto está a forte influência da indústria farmacêutica no que diz respeito a favorecer o uso indiscriminado de medicamentos. Deste modo, o Estado torna-se refém de sua própria legislação, especialmente do Art. 196 que afirma que a saúde é um direito de todos e dever do Estado.

Contudo, no caso da fosfoetanolamina sintética, até que ponto é um direito à saúde o uso de uma substância que não é reconhecida como um medicamento, que não existem estudos científicos em seres humanos que comprovem a sua efetividade e eficácia e que não tem registro na Anvisa?

Neste caso, se confrontam dilemas e questões de ordens ética, legais e econômicas que se materializaram somente após a grande repercussão causada pelos aparelhos midiáticos que, de maneira desastrosa, levaram a milhares de pessoas portadoras de câncer e aos seus familiares a falsa esperança de cura de uma doença que traz não só o sofrimento físico, mas especialmente o sofrimento psíquico, e que representa a segunda maior causa de morte no mundo.

Diante disso, resta-nos um questionamento: quem será responsabilizado pelos danos de ordem psicológica das pessoas portadoras de câncer e de seus familiares? A Universidade que produziu e distribuiu a fosfoetanolamina para alguns pacientes? O judiciário que obrigou a instituição a distribuir para aqueles autores dos processos judiciais? Ou setores da mídia que disseminam uma falsa idéia de cura, prestando um desserviço à sociedade?”

* Do Portal Saúde no Ar

 

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