O grito de Anitta

O grito de Anitta

 

*Márcia Mendonça Carneiro

 

As redes sociais e a mídia em geral entraram em rebuliço, na semana passada, quando Anitta desabafou sobre os nove anos de sofrimento até que chegasse ao diagnóstico de endometriose. Embora seja chamada de doença da mulher moderna, a endometriose foi descrita pela primeira vez em 1860 e permanece como doença enigmática e desafiadora para médicos e pacientes.

Anitta não está sozinha nessa jornada. A endometriose é uma doença benigna caracterizada pela presença de tecido menstrual (endométrio) fora do útero, podendo atingir não só os órgãos reprodutivos, mas também intestino, bexiga e até os pulmões. Os principais sintomas incluem cólicas menstruais, dor durante as relações sexuais e ao evacuar e urinar. Em geral os sintomas surgem ou pioram durante o período menstrual, mas manifestações atípicas como as que Anitta relatou não são raras.

A infertilidade é outro ponto doloroso da doença que pode levar a obstrução das trompas, alterar ovulação e dificultar a implantação do embrião entre outros. Acredita-se que a endometriose seja responsável por 40 a 50% dos casos de infertilidade infelizmente os tratamentos disponíveis até o momento apenas aliviam a dor, mas não são curativos e devem ser mantidos por longos anos.

A doença afeta cerca de 7 milhões de brasileiras que percorrem um longo caminho desde o início dos sintomas até o diagnóstico definitivo. Tal demora se explica pelos sintomas inespecíficos, a necessidade de exames diagnósticos realizados por médicos especializados e um fenômeno denominado “normalização da dor”. Estudos revelam uma realidade que não é exclusiva do Brasil: cerca de 61% das mulheres com endometriose escutaram de um médico, inclusive de seus ginecologistas, que não havia nada de errado e que a dor seria “normal” e muitas (47%) passam por cinco ou mais médicos até obter o diagnóstico e/ou tratamento adequados. A jornada de uma mulher com endometriose envolve a peregrinação por consultórios e realização de inúmeros tratamentos, inclusive cirurgias, sem conseguir o alívio da dor ou a tão sonhada gravidez. Infelizmente, para a maioria das mulheres a dor e o sofrimento são inevitáveis.

A pergunta é como uma pessoa com acesso a tratamento médico especializado como Anitta passa nove anos com dores aparentemente sem solução? Para quem trabalha diariamente com endometriose como eu, o relato de Anitta não é novidade. A endometriose é tema de campanhas anuais de conscientização e faz parte do currículo médico. Tanto a Sociedade Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO) como a Sociedade Brasileira de Endometriose (SBE) trabalham ativamente pela educação dos médicos e população em geral sobre a doença. Há produção de farto material educativo para leigos e profissionais médicos assim como desenvolvimento de protocolos assistenciais e divulgação em mídias sociais. Apesar de tanto esforço, o atraso diagnóstico ainda persiste e não temos equipes adequadamente formadas e treinadas para diagnosticar e tratar endometriose.

O grito de Anitta ecoou pelo mundo real e virtual e foi o tema mais pesquisado no Google no domingo (10). O desabafo da cantora é importante para divulgar a situação das mulheres com endometriose, mas é preciso mais. Os números da doença são impressionantes em termos dos gastos, tanto no sistema público como no privado, assim como o comprometimento da qualidade de vida em termos pessoais e profissionais. Não há dúvida que estamos diante de um problema de saúde pública e as diretrizes atuais recomendam que mulheres com endometriose sejam tratadas por equipes multidisciplinares, que infelizmente não estão disponíveis em todos os lugares.

Enquanto esperamos o avanço nas pesquisas e a estruturação de equipes capazes de diagnosticar e tratar a doença, há muito que, nós médicos, podemos fazer por essas mulheres. O foco do tratamento é a individualização e a melhora da qualidade de vida. Assim, acreditar que a dor é real é o primeiro passo. Fornecer cuidados adequados com foco em qualquer aspecto da doença que mais preocupe mulher, abrindo espaço para discussão de dúvidas e medos, já que a doença afeta de maneira única cada mulher. Por fim, siga o conselho de Sir William Osler: “Ouça sua paciente – ela está lhe dizendo o diagnóstico.”

 

* Diretora Cíentífica – Clínica de Reprodução Humana Origen, Professora Associada Departamento de Ginecologia e Obstetrícia-Faculdade de Medicina – UFMG

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